terça-feira, 22 de julho de 2008

Severino

Quando cheguei, a esperança encobria o cinza da cidade grande. Desci do ônibus e já na rodoviária me embriagava com o cheiro da pele das gentes que iam e viam sem parar se espremendo pelos ônibus e nos trens. Nesse ir e vir consegui trabalho na construção civil, erguendo os edifícios que são a cara dessa cidade. Na hora do almoço, sentado em uma viga no décimo quinto andar de mais um arranha-céu, costumava olhar a vista de São Paulo lá do alto enquanto devorava minha marmita de arroz frio e ovo mole. De semana em semana ligava para a Maria para saber da molecada e contar a experiência na cidade grande. A cada ligação avisava quanto de dinheiro estava enviando e prometia um dia mandar buscar toda a família. Mas o cinza da cidade foi tomando conta do verde da esperança. Da cobertura dos novos edifícios não conseguia mais enxergar a promessa de vida digna na cidade grande. A cada mês que passava era engolido pelo pó da solidão e da indiferença. À noite dormia para esquecer da fome. De dia bebia para agüentar a lida. Cada tijolo que assentava era uma parte do meu castelo de areia que desmoronava. As ligações para Maria foram diminuindo pouco a pouco enquanto as visitas à Casa da Irene aumentavam. Nos finais de tarde me embaraçava nos braços e pernas das prostitutas da Rua Aurora. Nessas horas lembrava de quando me deitava com a Maria pelos cafezais e nas nossas aventuras pelos canaviais. Foi na colheita do algodão que fizemos do Deusiné. Na da soja a Irene e na colheita da laranja a Ritinha. Teve também o Zequinha, mas esse acabou morrendo logo depois do nascimento. Mas quando a excitação acabava abria os olhos e só via a Iris, morena gostosa da coxa grossa com cheiro de flor do mato. Acho que era seu bafo de café que me levava de volta aos cafezais e aos braços da minha Maria. Depois me entregava a velha branquinha. Bebia até cair. Mas no dia seguinte, sempre na mesma hora, voltava à construção da cidade grande e erguia mais uma parede, instalava mais uma janela e mais uma dúzia de portas, das tantas outras que já foram fechadas ou batidas na minha cara desde que cheguei aqui, na terra das oportunidades. Terra das cinzas dos meus sonhos de retirante da seca do nordeste.

3 comentários:

Sady Folch disse...

Renata, este é o mais belo texto que li desde o dia em que começamos o nosso curso. É emocionante, forte, verdadeiro, e real.
Ao mesmo tempo frio pelo sentimento da cidade grande, e quente pela paixão e lembranças de Severino.
Renata, este texto é maravilhoso.
Abraços meus
Sady

Claudia disse...

Adorei, Renata. E adorei também o novo visual.
Um beijão, Clau.

Nanete Neves disse...

Renata, concordo com o Sady...as lembranças de seu personagem concentram o calor deste conto, e são a única vida possível desse personagem. Muito legal! Só uma observação: o novo layout traz letras pequenas demais para linhas tão longas. Para mim dificultou a leitura. Veja com outras pessoas se com elas aconteceu o mesmo. Um beijo e ...apareça!